Artigo de Adriana Barbosa, diretora-executiva da PretaHub e fundadora do Festival Feira Preta, publicado na Fast Company em junho de 2024.
Começar, construir, crescer, errar, ressignificar, estruturar, expandir, orar, nascer, renascer, escutar, transcender e dançar são todos verbos de ação que, conjugados em roda, na circularidade, chamam outro verbo: reexistir.
E isso no sentido de não apenas aparar todas as adversidades que acometem as pessoas vulnerabilizadas socialmente, em especial as mulheres negras, mas também criar, criar muito, com as lições de nossa ancestralidade, como Sankofa nos ensina a fazer.
O Festival Feira Preta é uma iniciativa que constrói, entre outras coisas, espaços de compartilhamento de saberes negros. Ele promove não apenas territórios de sociabilidades, de letrar sobre saber-se negro, mas investe, direta e indiretamente, nas mulheres que ali estão para se pensar e existir a partir de uma perspectiva de potência como mulheres negras, empresárias, sócias, mães, criadoras.
É uma compreensão do empreender para muito além do glamour que ele proporciona. Eu era uma jovem paulistana de 22 anos em 2002. Uma multinacional de cosméticos tinha acabado de lançar o primeiro produto “racialmente segmentado”. O sabonete se chamava Pérola Negra, e a atriz Isabel Fillardis foi a garota-propaganda da campanha publicitária.
A empresa anunciava que o sabonete tinha uma fórmula específica para a pele negra. Observando esse cenário, eu e minha amiga Deise Moyses pensamos o seguinte: se essa empresa estava investindo em algo direcionado a pessoas como nós, certamente teria interesse em apoiar uma feira cujo tema central fosse a estética negra.
Talvez outro motivo tenha sido a marca principal que o Festival Feira Preta carrega até hoje: essa história não nasceu para ser construída por uma pessoa só. Nos últimos anos, ele tem se destacado como um catalisador de empreendedorismo e cultura negra, proporcionando oportunidades únicas para diversos afroempreendedores.
Como referência, trago números da edição deste ano: três dias de evento, quatro palcos, mais de 100 atrações, com mais de 300 artistas e painelistas, sem contar a equipe com centenas de pessoas negras em todas as funções – mais de 90% do total contratado.
Minha família teve um papel fundamental nessa história. A aposentadoria da minha avó foi o meu maior financiamento nos primeiros anos de empreendedorismo. E essa característica não foi exclusividade minha. Negócios geridos pela população negra têm uma tradição familiar muito forte. A maioria dos expositores que participam da feira tem a família envolvida desde a gestão até a produção.
O que faz o negócio girar são os investimentos próprios, e não um empréstimo, por exemplo – e muito disso se deve às dificuldades que nós, pessoas negras, encontramos em conseguir empréstimo.
Só que essa escassez de investimento faz com que nossas iniciativas tenham um tempo de vida mais curto. Em famílias brancas, é comum conhecermos histórias de filhos ou filhas que assumiram os negócios dos pais ou dos avós.
Para muitas mulheres negras, empreender significa mais do que apenas criar um negócio; é uma forma de empoderamento e autonomia financeira. Não me lembro de um momento sequer em que as mulheres ao meu redor não trabalhassem.
Usei a capacidade intelectual que minhas antepassadas haviam transmitido a mim como uma herança: a habilidade de transformar escassez em abundância. Eu era mãe de primeira viagem.
Clara, minha filha, tinha apenas seis meses quando fui para o Maranhão replicar o modelo da Feira Preta fora de São Paulo, em 2013. Decidi viajar mesmo em um estado de cansaço profundo, sentindo culpa por ficar dias longe da minha filha, que estava em fase de amamentação.
Trabalhar era o movimento natural para mim, pois acreditava que era essencial não apenas para o sustento da minha família, mas também para o fortalecimento da minha identidade como empreendedora negra.
O Brasil tem muitas empresas familiares, mas, para a população negra, passar negócio de mãe para filha não é algo natural. Nossa realidade ainda tem um perfil de descontinuidade gigante.
No início, ainda não falávamos de empreendedorismo, falávamos de “escoar produtos”. Esse espaço sempre ofereceu um ambiente acolhedor e inclusivo, no qual essas mulheres podem encontrar inspiração, networking e recursos para transformar suas ideias em negócios lucrativos.
Uma das principais maneiras pelas quais o Festival Feira Preta influencia a formação empresarial de pessoas negras, sobretudo mulheres, é por meio do acesso a recursos e oportunidades.
Durante o evento, todas têm a chance de participar de workshops, palestras e mentorias ministradas por especialistas em diversos campos, capacitando-as com conhecimentos práticos e insights valiosos.
Este ano, contamos com uma programação especial para empreendedores, na qual que foram debatidos temas como cadeia de fornecedores para grandes empresas, transformação digital, inteligência artificial para pequenos e médios negócios, como acessar linhas de crédito para o próprio negócio, finanças para empreendedores e trocas de experiências.
Além do aspecto educacional, o festival também é um terreno fértil para a colaboração. Mulheres empreendedoras, sendo a maioria, têm a oportunidade de se conectar com outras empresárias negras, compartilhar experiências e até mesmo formar parcerias estratégicas que impulsionam seus negócios para o próximo nível.
Estamos continuamente reforçando um dos principais aspectos, que é o papel de inspirar as gerações futuras. Ao testemunhar pessoas negras que transformaram suas paixões em empreendimentos de sucesso, as crianças são incentivadas a sonhar grande e acreditar em seu potencial ilimitado.
À medida que o evento continua a crescer e evoluir, desejo que seu impacto positivo na comunidade afroempreendedora também aumente, capacitando mais pessoas negras a alcançar seus objetivos e realizar seus sonhos. Principalmente as mulheres, que têm em suas existências o imbricamento do racismo e do machismo.
O Festival Feira Preta é mais do que um evento. É um movimento que transforma vidas, empodera as mulheres e constrói um futuro mais promissor para a comunidade negra. Por meio do empreendedorismo, este festival abre portas para novas oportunidades, promove a equidade racial e inspira as gerações futuras a acreditar em seus sonhos.