Artigo de Adriana Barbosa, diretora-executiva da PretaHub e fundadora do Festival Feira Preta, publicado na Fast Company em novembro de 2023.
Começando pelo básico, “consumo” é o ato de utilizar um produto ou serviço para satisfazer uma necessidade pessoal ou de um grupo.
Quando pensamos nesse processo com recorte para a população negra, que representa cerca de 57% da população do país, vemos dados que revelam que nós movimentamos cerca de R$1,7 trilhão na economia. Ou seja, ao todo são 114,8 milhões de pessoas negras comprando anualmente, mais que toda a classe A (segundo dados do Movimento Black Money).
enho visto os esforços para a criação de produtos para a população negra e, apesar desse crescimento significativo, ainda é difícil encontrar itens voltados à comunidade.
Esse é um assunto que vem sendo debatido com frequência, visto que todo esse valor para lá de expressivo, mesmo sendo uma fonte de lucro certeira, é deixado de lado por conta do racismo estrutural, que leva a maioria das empresas a direcionar seus negócios às pessoas brancas, como se o poder de compra fosse exclusivo delas.
O que será capaz de dar conta de tantas camadas, dimensões e complexidades do consumo da população negra brasileira?
Pensando em responder essa questão, realizei em conjunto com os pesquisadores Marcos Agostinho Silva (do Instituto MAS Pesquisa), Raoni Cusma (Orolab), Jefferson Mariano (IBGE), Jess Castro (Queen) e Estela Castro (EKO Design), um estudo inédito, por encomenda da Globo, que foi capaz de organizar as dimensões do consumo negro, sendo dividido em três tempos: passado, presente e futuro.
Existe uma permanente tentativa de simplificação em relação às questões de raça no Brasil, o que prejudica o debate e análises mais profundas. Esta pesquisa buscou respeitar, considerar e trazer o racismo dentro do seu real emaranhado de raízes, efeitos e impactos para, a partir disso, colocar em pauta a realidade das dinâmicas de consumo da população negra.
DIMENSÃO HISTÓRICA: PASSADO
A luta pela inclusão social, cultural, econômica e política da população negra afeta e molda a história do Brasil.
Em sua maioria, os movimentos negros na América Latina foram influenciados pelo movimento negro nos Estados Unidos, nas décadas de 1960 e 1970; pela luta contra o apartheid na África do Sul, entre as décadas de 1960 e 1990; e pelo processo pós-Durban, por conta da 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo (realizada em 2001).
DIMENSÃO HISTÓRICA: PRESENTE – REPRESENTATIVIDADE E NECESSIDADE
Existe uma racionalidade econômica racista, onde a sociedade cria e o mercado consolida os estereótipos que retiram a individualidade de cada pessoa negra, reduzindo sua dignidade e diversidade a um bloco único e singular. Esta ação dá suporte à manutenção diária do racismo criando obstáculos, também, no ato de consumir.
Por meio da Constituição Federal de 1988, quis o Poder Constituinte extirpar qualquer forma de preconceito, visando uma sociedade harmoniosa e fraterna. Porém, pouco ou quase nada se fala sobre a prática do racismo – seja na sua forma escancarada e/ ou velada (estrutural).
Pensando na relação de consumo, especificamente, é interessante observar como o custo do constrangimento causado pelo preconceito impacta na decisão de compra. De acordo com a pesquisa “O que falta para reinar? Um olhar para consumidores negros”, 81% dos entrevistados não compram mais, reduzem o consumo ou deixam de ir à loja física diante de uma ocorrência de discriminação racial.
Apesar de toda a capacidade financeira e potencial de consumo, ainda existe certo esforço do mercado brasileiro em ignorar o público negro.
DIMENSÃO POLÍTICA: PRESENTE – CONSUMO E AFROEMPREENDEDORISMO
Com todos esses obstáculos da dimensão econômica para a qualidade de vida da população negra, o afroempreendedorismo ainda hoje é fundamental para a possibilidade de sair de tal fragilidade e falar de forma ativa sobre prosperidade de fato.
Sou exemplo claro disso. A Feira Preta nasceu quando eu tentava encontrar uma resposta para a seguinte pergunta: se mãos pretas produzem, por que o dinheiro vai parar no bolso de pessoas brancas?
Essa indagação veio após observar a movimentação da renda gerada por festas de cultura negra na capital paulista, quando eu e uma amiga começamos a circular por esses eventos.
Como estava desempregada, passei a vender minhas próprias roupas e, assim, montei um brechó que levava de evento em evento. Percorri a cidade carregando a estrutura de ferro da barraca nas costas e contando o dinheiro para as passagens de ônibus.
Foram muitos obstáculos enfrentados até sermos hoje o maior festival de empreendedorismo negro. Encontrei muita desconfiança por parte das marcas, além de perceber que tinham medo de investir na proposta por ser algo que ninguém tinha feito antes.
E isso ainda segue acontecendo, não só comigo, mas com muitos outros. A pesquisa traz um recorte sobre a renda mensal do empreendedor negro e do não negro, e da falta de acesso a crédito e outras políticas que podem alavancar negócios de pessoas negras.
Dos entrevistados, 51% dos donos de pequenos negócios procuraram empréstimo nos últimos dois meses, mas muitos não conseguiram, sendo que a falta de acesso a crédito e outras políticas que podem alavancar seus negócios mantêm as pessoas negras no empreendedorismo de base.
Ou seja, o afroempreendedorismo pode ser uma saída para o desemprego, mas é muito difícil ser um empreendedor negro no Brasil.
DIMENSÃO DE INTEGRAÇÃO: FUTURO – O QUE FALTA PARA O CONSUMIDOR NEGRO REINAR?
Consumir vai além da visão prática, da possibilidade de pagar e obter mercadorias. Tem uma caráter simbólico e social moldado pela cultura. Pode significar acesso, mas também pode significar barreira nas conexões sociais.
A jornada de consciência racial no consumo se divide em três fases: acesso, pertencimento e político. Para cada um deles há um significado: sobrevivência, prazer e identidade.
Na fase de acesso, não há uma consciência racial apurada, mas há consciência de classe social. Trata-se da possibilidade de consumo básico, para inclusão e sobrevivência, via políticas públicas ou trabalho remunerado, ao consumo de itens de luxo, via ascensão social por diferentes meios.
Para o pertencimento, destaco a liberdade de escolha e o ganho de mais repertório sobre raça, que aos poucos vence as barreiras psicológicas que o racismo impõe na prática do consumo.
Na fase de consumo político, a jornada da consciência racial e interseccional está mais estabelecida. A partir daí, as pessoas negras passam a ter desejo de manter o seu dinheiro dentro da comunidade, preferindo consumidor de afroempreendedores.
Quando falo de coexistência, ressalto que é preciso assegurar o papel competitivo dos negros na economia, nos diversos mercados e nas dinâmicas da comunicação.
Esse público também precisa ser visto como decisor, estrategista e criador de experiências, produtos e serviços que carregam diferencial e qualificação, gerando melhores conexões entre a marca e como ela deseja ser percebida.
Descolonizar o pensamento para respeitar. Descolonizar o olhar para integrar. Coexistir para prosperar. É assim que se acessa 1,460 trilhões de oportunidades de desenvolver negócios com e para a população negra do país.
Tudo isso é garantir protagonismo para quem é parte fundamental e estruturante do Brasil.